Património
Capela da Misericórdia
Em 1585 o Provedor e Irmãos da Misericórdia dirigem-se ao rei, pedindo licença para construírem
uma nova Igreja, em terrenos pertencentes ao adro da Matriz de S. Salvador, visto que “o seu lugar
era pequeno” e “tinham uma igreja muito velha pequena e de sobrado já carcomido”.
Obtida a necessária autorização régia que estipula “que não ponham a isso dúvida e não haja
impedimento algum e lhe deixem fazer a dita casa da mizericórdia no lugar onde se possa fazer”.
Logo se terão iniciado os trabalhos, habitualmente demorados, condicionados pelos rendimentos
da Irmandade, que é autorizada a 7 de Dezembro de 1587 a ir pedir esmolas pelas povoações vizinhas,
dentro da comarca de Campo de Ourique, a que Sines pertencia, por forma a conseguir os fundos
necessários a uma mais rápida conclusão da obra, de forma que Leonardo Turriano, ao elaborar a
planta de Sines, próximo da viragem do século, já representa a nova capela.
Primeiro Brasão
O edifício que hoje vemos é basicamente o então construído, salvo algumas alterações pontuais a que
adiante aludiremos. É uma igreja de uma só nave e capela-mor mais estreita, com tectos de madeira,
caracterizada por uma grande austeridade e solidez de construção, apenas se destacando sobre o portal
principal um brasão com a representação das cinco chagas de Cristo, utilizado como símbolo das
Misericórdias. Notável peça de escultura em mármore, enquadrada por cartelas maneiristas, numa
composição em delicado baixo-relevo, constituía o único elemento decorativo do exterior da Igreja.
No interior subsistem ainda nos vãos das duas janelas que ladeiam o portal alguns exemplares de azulejos
de padrão de fabrico sevilhano, idênticos aos existentes em S. Roque, integrados em painel datado de 1596
e que se destacam da produção portuguesa da mesma época, pelo desenho mais elaborado e execução mais minuciosa.
Pouco ou nada se conhece sobre as obras efectuadas ao longo do séc. XVII e primeira metade do séc. XVIII,
de que também não foi possível identificar vestígios materiais. Só após o terramoto de 1755 vamos encontrar
na “Memória Paroquial do Concelho de Sines”, em 1758, abundantes informações:
Já fica dito que há Casa da Mizericordia nesta VilIa a qual he huma Igreja de bom corpo, e altura, e agora
novamente acrecentada com huma boa Capella de abobeda, ainda que he amadeyrado, e apaynelado todo o mais
corpo da Igreja. Tem a Capella hum bom arco de cruzeiro forrado de madeyra, e fingido de boa pedra. Os degraos
do Altar, que não passaõ de sinco saõ de pedra vermelha, e os Presbiterios saõ da mesma pedra, excepto os espelho,
que saõ de pedra de montes claros. Tem hum retabolo de talha moderna com os altos dourados, e os lizos de pedra
fingida. O retabolo tem seu fundo, e nelle hum Trono em que está colocada hua bem porporcionada imagem da Senhora
da Graça novamente feita, e estofada, com sua coroa de prata de bom feytio, e grandeza (…).
Toda esta obra da Capella, como tambem a nova imagem que nella está colocada foi feyta á custa das esmollas,
que os fieis davaõ á Senhora da Graça, que hera huma imagem de pedra que estava sobre a porta principal desta
Igreja da parte de fora, com a qual tinhaõ grande devoçaõ. Esta imagem por se julgar improporcionada se colocou
detras do retabolo, e em seu lugar se fes aquella imagem que se colocou no Trono.
Por baxo do Cruzeyro na parede da parte do Evangelho está outro Altar com seu retabolo lizo dourado no qual e
staõ colocadas as imagens do Senhor com a crux ás costas que serve na Procissaõ dos Passos, e a Senhora da Soledade.
Tem pulpito da mesma parte, com bacia de pedra bem lavrada, choro, cadeyra para a Irmandade, sanchristia, e caza de
despacho sobre ella. A porta principal fica para o Occidente em huma rua, e a porta travessa fica para o largo que
formaõ as tres igrejas.
Se bem que o mesmo documento mais a frente nos afirme que:
Padeceu esta VilIa bastante ruina no Terramoto de 1755, arruinando-se vários edificios de cazas e Jgrejas e athe
o mesmo Castello a padeceu grande
Algumas destas ruinas se achaõ ja reparadas, especialmente algumas Igrejas
Não nos é indicado se as obras, especialmente as da capela-mor, com o seu imponente retábulo de talha dourada e
policromada, foi de facto executada no seguimento dos estragos provocados pelo terramoto, o que denotaria grande
capacidade económica da confraria para já ter concluídas as obras passados três anos, com o retábulo já instalado
e acabado, o que normalmente só ocorria após alguns anos devido aos custos da pintura e douramento. Ou então podemos
considerar como segunda hipótese que as obras foram executadas e concluídas nas vésperas do terramoto, devido à
vontade de engrandecimento do templo, pois:
Toda esta obra da Capella, como também a nova imagem que nella está colocada foi feyta á custa das esmollas, que os
fieis davaõ á Senhora da Graça!
Qualquer que seja a hipótese correcta é facto de salientar a preocupação dos confrades em dignificarem o melhor possível a sua igreja, procurando um bom entalhador para a execução do retábulo, o que pela análise estilística do mesmo podemos atribuir a uma oficina de Évora, importante centro de produção na época e a cuja Arquidiocese pertencia então a vila. Após o transporte difícil e demorado de Évora para Sines, e a sua instalação na capela-mor, a madeira de casquinha em que foi executado foi cuidadosamente acabada: Com os altos dourados, e o lizos de pedra fingida. Em 1758 já estava esta operação terminada, sendo notória a influência exercida pela capela de S. João Baptista, derradeira extravagância de D. João V, ainda não totalmente concluída quando da sua morte em 1750. O valor dos materiais utilizados na sua execução e a riqueza cromática do conjunto de lápis-lazúli, pórfiro, mármores, bronze dourado entre outros materiais preciosos impressionou de tal forma os contemporâneos, que passaram a reproduzir o seu efeito na pintura dos retábulos, onde o dourado se vai progressivamente limitando aos elementos decorativos em relevo, destacados sobre fundos fortemente policromados de azul, vermelho e verde. Na estrutura arquitectónica do retábulo denota-se a continuidade de esquemas compositivos da talha do reinado de D. João V, com a sua tribuna em arco de volta perfeita abrigando um trono, ladeada por colunas salomónicas e decorada com “rendas” e grinaldas, com um remate superior em que esvoaçam grandes anjos por entre elementos concheados, denotando-se nos pormenores decorativos a cópia clara de elementos decorativos rococó de origem francesa, que circulavam abundantemente nas nossas oficinas por meio de gravuras. Se a capela constitui o mais marcante contributo artístico e cultural da Irmandade, fundamental na prática das Obras de Misericórdia, como rogar a Deus pelos vivos e pelos mortos ou mesmo enterrar os mortos, o hospital desempenhava o seu papel de curar os enfermos, cobrir os nus, dar de comer aos famintos, dar de beber a quem tem sede e dar pousada aos peregrinos e pobres.
Carreta Fúnebre